Em Fevereiro 2006 o futebolista camaronês Samuel Eto'o (eleito melhor jogador africano em 2003, 2004 e 2005) ameaçou sair do campo durante o jogo Real Zaragoza - FC Barcelona.
Razão: pelo segundo ano consecutivo os adeptos do clube da casa atiraram punhados de amendoins para o relvado, sempre que o jogador tocava na bola, acompanhando esta prática com gritos e gestos simionescos. "No mas!", foi o curto, mas inequívoco comentário de Eto'o.
Lembrei-me deste episódio durante o encontro de xadrez para os oitavos de final da Taça de Portugal AA Amadora - GX Alekhine no sábado passado. O match foi disputado numa sala do Pavilhão Desportivo do clube amfitrião. Como todos os pavilhões desportivos em Portugal também este tem um eco fantástico, muito bom para as torcidas vibrantes de modalidades como andebol ou basquetebol, mas absolutamente catastrófico para a modalidade do xadrez: os tabiques e as paredes de vidro ou plástico transparente da sala de xadrez deixam passar generosamente qualquer som de fora.
Nessa tarde felizmente não houve jogos de competição com público entusiasmado nas bancadas, mas houve outros contratempos.
Logo na fase da abertura tinha que ser eu a pedir que baixassem o som dos altifalantes dum plasma gigante na entrada do pavilhão, perante a passividade dos dirigentes da casa.
Completamente inédito e inaceitável, no entanto, foi o "espectáculo" que se desenrolou a seguir (na fase complicada do meio-jogo nas partidas) e que me levou a escrever este post algo metafórico como tentativa de sublimação da dor da derrota...
Uns dez jovens africanos entraram no pavilhão com muito barulho e no corredor encostaram as caras aos vidros da nossa sala, acompanhando a gritaria com uma batucada suave contra as janelas. Pensei: "É a vingança de Samuel Eto'o, agora os macaquinhos somos nós!".
Neste inferno dantesco eu estava a tentar jogar uma partida interessante contra o ex-vice-campeão mundial de juniores Rúben Pereira.
Mestre Rúben (2422) - Macaquinho Marinus (2197), (Defesa Francesa, variante Winawer)
1. e4 - e6; 2. d4 - d5; 3. Cc3 - Bb4; 4. e5 - c5; 5. Bd2 - Ch6!? uma provocação, normal é 5...Ce7, agora 6. Bxh6 - gxh6 é posicionalmente mau para as pretas, mas dá possibilidades tácticas, ou seja: uma variante aliciante para o jogador que tem menos a perder. Rúben não arrisca e segue uma linha principal 6. Cb5 - Bxd2+; 7. Dxd2 - 0-0; 8. f4 no caso de 8. dxc5 eu tinha preparado 8...Cc6; 9. Cf3 - b6!?; a) 10. cxb6 - Dxb6; 11. 0-0-0 - Cg4; 12. Cbd4 - Cgxe5; 13. Cxc6 - Cxc6 ou b) 10. Dc3 - Bd7; 11. Bd3 (ou 11. Cd6 - bxc5; 12. Cb7 - Db6; 13. Cxc5 - Cg4!; 14. Cxd7 - Dxf2+; 15. Rd1 - Tfc8!, o triunfo de 5...Ch6!) - bxc5; 12. Dxc5 - Cg4! com bom jogo para as pretas; 8...Cc6 aqui o meu "flexible paperback-friend" John Watson in "Play the French" sugere: 8..a6!; 9. Cd6 - cxd4; 10. Cf3 - Cc6 (...f6!?); 11. Bd3 (ou Cxd4 - f6) - f6 com bom jogo: 12. 0-0 - Cg4!; 13. De2 - Ce3; 14. Tf2 - Db6; 9. Cf3 - cxd4 um dos poucos jogos com esta variante entre GMIs continuou 9...f6; 10. c3 - Bd7; 11. Cd6 - cxd4; 12. cxd4 - Db6; 13. 0-0-0 - fxe5; 14. fxe5 - Be8; 15. Cxe8 - Taxe8 (1/2 - 1/2 , 31) Peter Leko - Jesus Maria de la Villa Garcia (belo nome!), Leon 1994; 10. 0-0-0 - f6; 11. exf6 - Dxf6; 12. g3 - Cf5 12...Cf7 podia conduzir à posição na partida após 13. Cbd4 - e5!?; 14. fxe5 - Cfxe5; 15. Cxe5 - Dxe5; 13. Cbxd4 - Cfxd4; 14. Cxd4 - e5!? isola o peão d5, mas dá espaço ao bispo c8, mais trocas em d4 favorecem as brancas; uma alternativa era 14...Bd7; 15. Bg2 - Tac8; 16. The1 mas as brancas têm uma vantagem posicional; 15. fxe5 - Dxe5; 16. Bg2 - Bg4; 17. The1 - Dh5 (diagrama)
18. Ce6 - Bxd1 uma curta fase táctica que tinha que ser bem calculada: se agora 19. Bxd5 - Tf5! as brancas têm que repetir os lances: a) 20. Cd8+ - Rf8; 21. Ce6+ etc., pois 20. Cf4+?? - Txd5 perde uma peça; no entanto, não b) 20. Cd8+ - Txd5?? (não vi tudo o que vem a seguir, mas um mínimo de intuição dispensa o cálculo completo da variante) 21. Dxd5+ - Rh8 (21...Dxd5??; 22. Te8 mate ou 21...Rf8; 22. Tf1+ e as pretas também não sobrevivem); 22. Tf1! - h6 (22...Dxd5; 23. Tf8+ - Dg8; 24. Cf7 um mate esteticamente aprazível!) ; 23. Tf8+ - Rh7; 24. Dg8+ - Rg6; 25. Ce6 - De5 (25...Txf8; 26. Cxf8+ e 27. De6(+) + -) 26. Cf4+ - Rg5; 27. Txa8 + -; o computador dá ainda a variante louca c) 20. Cd8+ - Rh8?!; 21. Bf7 - De2!!??; 23. Txe2 - Bxe2; 24. Dxe2 - Txd8; 25. Bc4 com alguma vantagem branca; 19. Cxf8 - Bf3 19...Bxc2 para resolver o problema do peão isolado d5 não parece bom: 20. Bxd5+ - Rh8 (20...Rxf8?? é mate em três); 21. Ce6 - Bg6; 22. Dc3 - Dh6+; 23. Cf4 - Tf8; 24. h4 com grande vantagem branca; uma variante cómica: 23. Cf4 - Tc8?; 24. h4! - Ce7; 25. Txe7 - Txc3+; 26. bxc3 - Bh5; 27. Txb7 - g6; 28. Txa7 etc. 20. Bxf3 - Dxf3; 21. Ce6 - h6 "Was ist der Mensch ohne Ventil?" dizia já no século XIX o Mestre alemão Siegbert Tarrasch ("O que é o homem sem válvula de escape?"); 22. Cd4 aqui Rúben gastou uns 25 minutos, ficámos ambos com meia hora no relógio; outras possibilidades: a) 22. Df4 - Dxf4; 23. Cxf4 - d4 =; b) 22. Dd1 - Dxd1+; 23. Txd1 - Te8; 24. Cc7 - Te2 =; c) 22. Cc5 - d4; 23. Cxb7 - Df7; 24. Cd6 - Dxa2 =; d) c3 - Te8; 23. Cc5 - Txe1+; 24. Dxe1 - b6; 25. De6+ - Rh7; 26. Dxc6 - bxc5; 27. Dxc5 - Dh1+ =; 22... Df6 (...Dg4!?); 23. Cxc6 - Dxc6? eu tinha medo de um final com "peões partidos": 23...bxc6; 24. De3 - a5; 25. De6+ - Dxe6; 26. Txe6 mas 24...Rh8! evita a troca de damas com entrada da torre branca, se 25. Df4 - Dxf4; 26. gxf4 - Tf8 =; 24. Dd4! - Dc4 24....Tf8; 25. Td1 - Td8; 26. Rb1!, ameaçando Dxa7 e c4, deve ganhar para as brancas; 25. Dxc4 - dxc4; 26. Te7 - Tf8?? falha de concentração grave que faz perder o jogo sem hipótese, após 26. ...b5; 27. Tb7 ou Rd2 as brancas estão melhor, mas a luta ainda continua; 27. Txb7 - Tf1+; 28. Rd2 - Tf2+; 29. Rc3 - Txh2; 30. Txa7 - Tg2; 31. a4 - Txg3+; 32. Rxc4 - h5; 33. a5 - h4; 34. Td7 - Tg1 chegou o momento para abandonar, mas o macaquinho estava bastante chateado...; 35. a6 - Ta1; 36. a7 - Rh7; 37. b4 - h3; 38. Td3 - g5; 39. Txh3+ - Rg6; 40. b5 - Txa7; 41. b6 - Ta4+; 42. Rb5 - Ta2; 43. b7 (1-0) Acabou-se a macacada (43...Txc2; 44. Tb3).
O capitão da equipa do GX Alekhine juntou ao boletim do encontro um protesto contra as condições de jogo.
(N.B. Post da exclusiva responsabilidade do autor que já decidiu que não volta a jogar no referido pavilhão)
10 comentários:
Caro Mac...Marinus,
grande trabalho, nem todas as revistas especializadas têm o luxo de publicar semelhante análise. Entendo a tua mágoa, solidarizo-me contigo. No entanto, no caso da minha derrota, não posso alegar(como "aleg" que sou te o digo :)) razões extra-xadrezísitcas, pelo simples facto de que o que me aconteceu naquele jogo, costuma-me acontecer muito amiúde: fiquei com tremendos apuros de tempo. E o meu respeitável rival também fez o seu melhor. Mas devo reconhecer que se a próxima vez (a vida continua) me calharia defrontar à AAA nas mesmas condições, exigiria duas melhoras, nomeadamente:
1. Maior espaço entre os tabuleiros
2. Silêncio razoável
De resto, mais uma vez, parabéns pela grande análise, é mesmo para aprender.
Abraço do Panda do Xadrez
Realmente... que trabalheira!
Para a próxima vez, se me enviares o pgn (com os comentários incluidos) não me importo de publicar a partida em teu nome, assim tu preocupas-te só com o texto e as imagens.
Realmente aquilo foi uma barulheira infernal, já tinha igualmente decidido não jogar na Amadora, na parte superior do pavilhão, isto porque, da última vez que lá joguei foi no inverno, e apanhei um frio de rachar. Gosto muito de xadrez, mas tudo tem limites, o meu masoquismo não chega a tanto.
Muito obrigado pela partida e pelos comentários (coisa rara de se ver em blogs ou forúns de xadrez em Portugal). Quanto ás condições de jogo, acho muito bem que se dê a conhecer estes episódios tristes, pois a meu ver nenhum "clube" digno de ostentar o nome de clube de xadrez, deveria estar aberto com aval de uma federação, quando não existem condições para a prática da modalidade. Acho piada que os dirigentes se preocupem só com contratações mas depois se mostrem totalmente cegos nas condições básicas e alicerces de uma modalidade. Obrigado pelo aviso, porque como jogador também não colocarei os pés mais nesse pavilhão. Os jogadores de xadrez (pelo menos aqueles dignos desse nome e que amam a modalidade) não devem pactuar com este tipo de situações, pois esse facto faz com que se perpetuem no tempo!
A análise desta partida parece um "work in progress".
Entretanto já juntei mais umas variantes (aos lances 18 e 22), ainda hoje de manhã "vi" no metro aquele mate afogado 24. Cf7 (análise lance 18). Também devia analisar 23...bxc6 (em vez de ...23 Dxc6?) e 26....b5 (em vez de 26...Tf8??), mas ainda não cheguei a esse nível de "sublimação"...
Com toda a clareza: não quero provar com esta análise que o resultado do jogo seria forçosamente diferente em condições de jogo normais. Só quero afirmar que a perturbação da concentração teve influência na qualidade do meu jogo: até ao lance 22 foi uma partida de bom nível ("aprovado" pelo computador), depois houve colapso em poucas jogadas, sem que se tratasse de apuros de tempo. Isso é para mim uma situação difícil de aceitar.
Logo após o encontro houve jantar de aniversário do GX Alekhine, as mágoas foram temporariamente diluídas ou "molhadas", mas não afogadas: já estava decidida a formulação dum protesto a juntar ao nosso boletim de encontro. O protesto não põe em causa o resultado do match (nem que seja só, quanto a mim, por respeito por meu adversário: é uma vergonha um jogador deste calibre ter de jogar nestas condições, a AA Amadora simplesmente não merece este jogador), mas sim as condições deploráveis em que tivemos de jogar. O que está em causa é a dignidade e seriedade da modalidade.
Como já disse numa troca de e-mails entre sócios do nosso clube: muitas vezes as pessoas têm medo de denunciar EM PAPEL as coisas que estão mal, porque a denúncia de uma situação de injustiça é confundida com uma ofensa de ataque pessoal. Resultado: o mal REPETE-SE ano após ano, como por exemplo a prática da modalidade do xadrez nesse horrível Pavilhão da AA Amadora.
Caro Anónimo, obrigado pelo seu comentário que tem só um senão (veja este comentário!): é anónimo. Faça a favor de assinar.
Eu assinaria aquela anónima opinião, mas não fui eu que a escrevi :)_-_-_
Contudo, na balança dos "deveres" e os "direitos", o respeito pelo "anonimato" deveria prevalecer por sobre a obrigação moral de "dar a cara", porque ser ou não ser "anónimo", é sempre uma decisão pessoal.
Já a Casa do Xadrez, quando lá jogou, tinha deixado protesto contra as condições de jogo no boletim. Na mesma altura a AAA (3) jogava a Taça de Lisboa, tendo o Altino achado que o protesto era "chato". É o nosso xadrez !
Veja-se o que se dizia na caixa de comentários a propósito desse jogo:
https://www.blogger.com/comment.g?blogID=455272331198248869&postID=1414495697896377227&isPopup=true
Abraço aos nossos amigos.
António Russo
Caro All Egg, claro que qualquer visitante neste blogue tem o direito de manter o anonimato e se calhar fui um bocado duro com o "Anónimo" neste post. Só que as afirmações dele/dela são bastante pertinentes e importantes, gostava de conhecer a identidade dessa pessoa. É verdade que uma denúncia anónima duma injustiça é sempre melhor do que "laisser faire, laissez aller" sem dizer nada, mas continua a ser uma forma de relativa "não-inscrição" (ou não-auto-afirmação), como explica muito bem o grande pensador português José Gil no seu livro (já repetidamente por mim mencionado): "Portugal hoje - O medo de existir", ed. Relógio d'Água.
Caro amigo António Russo, completamente de acordo e bem-vindo ao nosso blogue!
Olá Rini,
se calhar, eu deveria ler ao grande pensador português José Gil. Será que ele explica o "como" e não só o "que" fazer?
Por exemplo, como é que se faz que a pessoa seja corajosa? Corajosa em tudo. Que seja consciente, além de está-lo. Estamos no campo da Ética, corrige-me, se estou-me a enganar.
A teu enunciado é claro:
"Se se denuncia algo anonimamente, não é mau, é menos eficaz do que se se desse a cara, ao denunciar".
Ou seja, "a união faz a força".
Se em vez de denunciarmos a falta de coragem nisto da "auto-afirmação" (que requer desde já dum certo crescimento pessoal), se prosseguisse à compreensão das razões pelas quais aquela falta de coragem é tão recorrente, seria tudo menos trabalhoso, mais directo.
Se a explicação dos "como" está naquele livro que citaste, de certeza, o vou ler!
Já Hamlet o disse:
" To be, or not to be: that's the question"
Por exemplo, o nosso amigo alpiarcense, António Russo, sem dúvida, é.
Dizes e muito bem, Alberto: "A união faz a força", não será que a coragem pode provir da confiança nessa lema!? Como transmitir isso em livro, não sei.
Mas nunca confiei muito em figuras como Lauro Trevisan ("poder infinito da mente") que está muito na moda no momento... Vi-o na Feira do Livro a assinar os seus livros, idolatrado pelos seus leitores, isso não pode ser o caminho.
Penso que a coragem precisa de causas para se desenvolver, não há "receitas".
errata: ...confiança NESSE lema!?
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