As relações entre os jogadores de xadrez (aliás, como entre todas as criaturas do Universo... N.T.) nunca foram fáceis. Os conflitos (intrínsecos e extrínsecos) contam-se por milhares. No entanto, muito raramente, encontram-se pessoas que não têm, ou quase não têm inimigos. É o caso de Isaák Efrémovich Boleslávsky — inicialmente, candidato para o Campeonato do Mundo e mais tarde, o «Treinador Nº 1», cuja autoridade não era questionada, incluso numa companhia de estrelas de tamanho da selecção da União Soviética ...
Quem mais lhe poderia dizer a Geller: “Efim, você não percebe estas posições”, sem que este se incomodasse, senão pelo contrário, o tivesse em conta? Quando voltou a acontecer aquilo das Olimpíadas ganhas com uma margem de mais de oito pontos (ou seja: nas últimas duas rondas, podia-se, se apetecer, perder os jogos todos, e nada iria mudar)?
Sendo um dos principais fundadores da escola ucraniana do pré-guerra (conjuntamente com David Bronstéin e Alexandr Konstantinópolsky), Boleslávsky sobressaiu rapidamente no limiar dos anos quarenta. Durante a guerra, ele foi um dos que tem jogado muito nos torneios, na retaguarda, longe da linha de frente e se tem preparado para a eventual conquista do Campeonato do Mundo (aliás, a própria existência de tais competições preparatórias demonstra a certeza que se tinha, quanto à vitória). Tudo indica que o trabalho foi feito com o mesmo espírito, como se da indústria de defesa se tratasse: nos anos do pós-guerra o xadrez soviético não tinha concorrência.
A ascensão do Boleslavsky-desportista ocorreu no final dos anos quarenta, princípio dos cinquenta. Além de ganhar os jogos, ele se ganhou o reconhecimento geral pelo seu estilo – um estilo de rara harmonia, construído a base das “numerosas investigações científicas e análises laboratorias”.
Em 1950, em Budapeste, Boleslavsky não vence por um triz o Torneio de Candidatos, o que lhe teria aberto o caminho para disputar o match pelo ceptro mundial. Antes da última ronda, com meio ponto à frente de David Bronstein, que estava a jogar com Paul Keres, Boleslávsky tinha que defrontar o sueco Gideon Ståhlberg . Na luta feroz, Bronstein ganhou ao seu poderoso adversário, e Boleslavsky ... Boleslavsky ofereceu empate, a jogar de brancas, numa posição melhor, no décimo sétimo lance!
Claro que Ståhlberg também não era um obstáculo fácil (em Budapeste, ele ganhou ao Bronstein!), e ganhar “por encomenda” ao Keres era uma tarefa sumamente problemática. Mas foi incomprensível o facto de Isaák tranquilamente ter deixado o seu destino nas mãos dos outros ... tendo em conta que nos últimos jogos do torneio Ståhlberg já tinha baixado muito de nível!
Por tanto, ficaram só dois candidatos. O primeiro match de desempate ficou igualado. E só na série adicional(!) foi Bronstein quem venceu...
O match M. Botvinnik - Bronstein foi um dos melhores confrontos na história, quanto à qualidade. É pena não termos visto o duelo do Campeão do Mundo com Boleslavsky, porque de certeza teria sido um grande espectáculo. Na altura, o score entre ambos os jogadores favorecia a Botvinnik, mas qual é o problema? Boris Spassky antes do primeiro jogo com Robert Fisher estava com um historial de 3:0 a seu favor, mas ganhou o Grande Mestre americano ...
Como dado adicional, Boleslávsky representava em 1950, nada mais e nada menos que à histórica cidade russa de Sarátov. E se Isaák Efrémovich (que era um homem de família) não estivesse cansado de viver num hotel, a espera do apartamento prometido, de certeza teria sido «A pérola do Volga». Eis «apareceu» o prestigioso Minsk (capital da Bielorrússia) e ofereceu-lhe melhores condições para viver... Quem resistiria? .. Por isso, a familia toda se mudou..
Infelizmente, a vida confortável da capital bielorrusa não foi beneficiosa para o Boleslavsky-jogador (em termos puramente desportivos). Já no seguinte Torneio de Candidatos (1953), após um bom começo, ele logo afastou-se da luta pelos primeiros postos, e depois não jogou no Interzonal. É de não acreditar: continuando a fazer jogos de nível magistral, de repente o Grande Mestre deixou de ter ambições! Terá sido a despreocupação pelo seu estado físico, ou a sua inata natureza benevolente, a causa daquela mudança? Num dos jogos, tendo feito um empate com Keres numa boa posição, alguem perguntou-lhe : «Isaák Efrémovich, porque você aceitou as tablas?»
-Eu vi que estava melhor, mas se Paul Petróvich me tem oferecido um empate, por alguma razão ele o estava a necessitar, - foi a resposta.
Distinto era nas competições colectivas. Ao contrário dos campeonatos individuais, nos torneios por equipas I. Boleslasky costumava jogar em grande forma tanto nos campeonatos da URSS , como nos da Bielorrússia ou no «Sparták» (ou outrora, no “Burevéstnik”). Ai os resultados , por alguma causa nunca baixaram, ai ele continuava a ser o mesmo “grandioso e terrível”. Convenhamos, é mesmo raro. No entanto, aquilo é muito bem explicado no dístico de Yevgeny Ilyin (talvez, o melhor “poeta do Xadrez”):
***
Não lhe apetece arriscar as costas
É ser treinador do que ele gosta!
Quem já tem tido alguma experiência nesse âmbito, entenderá facilmente: para treinar as equipas e, ao mesmo tempo ser o segundo do Campeão do Mundo - literalmente não é um trabalho para mentes medíocres. Além disso, livros e mais livros ... publicados em todo o mundo.
Boleslávsky tornou-se lendário. Sendo bastante sociável num círculo reduzido de amigos, no trabalho a sua reputação era dum homem de poucas palavras. Mas quando ele lançava alguma réplica ou alguma lacónica observação, aquilo costumava ser mesmo memorável, como se dos aforismos espartanos se tratasse ... Uma vez, um molesto admirador seu, certamente lisonjeiro, não parava de louvar os seus feitos - Oh, voce é o segundo Steinitz! É o Nimzowitsch moderno! Etc...
Boleslávsky esperou a que este termine, e apenas perguntou: «O senhor é familiar de todos eles?»
Durante um par de décadas na sua vida, aparentemente “nada aconteceu” - como acontece com pessoas que trabalham muito e são bem sucedidas. A Selecção vencia ( a todos e constantemente), os livros escreviam-se e se editavam sem restrição ...
Mas tudo repentinamente acabou. O papel fatal no destino do Grande Mestre jogou o seu gato, chamado Filósofo.
Num dia do inverno Boleslávsky foi comprar comida para o gato, caiu e quebrou uma perna. Após a cirurgia, ele com o habitual fatalismo, em vez de continuar com as sessões de fisioterapia, começou a escrever mais um dos seus novos manuscritos ... Os pacientes sempre são alertados do perigo da falta de actividade física. Todos o compreendem, mas poucos seguem as recomendações. No dia em que foi dado de alta, já em casa, Boleslavsky faleceu de embolia pulmonar. A ajuda chegou tarde demais, mas nesse tipo de complicações, as esperanças de o salvar eram muito reduzidas.
* Parafraseando o antigo poema eslavo do séc. XII, http://en.wikipedia.org/wiki/The_Tale_of_Igor's_Campaign
O seguinte exemplo ilustra a rapidez com a que se pode receber um K.O. de um notável especialista em aberturas, tendo cometido só uma minúscula imprecisão.
4 comentários:
Muito apropriada esta homenagem a um dos gigantes soviéticos.
Quando comecei a jogar xadrez nos anos '70 na Holanda, o nome de Isaak Boleslavsky era conhecido como autor de um dos livros da série "Moderne Theorie der Schacheröffnungen" da Sportverlag Berlin. Ainda tenho "Spanisch bis Franzözisch" de Paul Keres, toda a teoria da Defesa Espanhola e (!) Francesa NUM livrinho de 250 páginas, impensável hoje em dia. Os outros best-sellers eram "Damengambit bis Holländisch" de Mark Taimanov e "Königs-Indisch bis Grünfeld-Verteidigung" de Isaak Boleslavski.
Bons tempos...
P.S.
Alberto, eu tenho uma edição bilingue (russo/português) de "A gesta do Príncipe Igor"/"Slovo o Polku Igoreve" (edições Cotovia, Lisboa, 1992). Podes-me explicar aquele "parafraseando" no título do post: "...e recebeu ele a morte do próprio gato"?
Belo retrato aleg e que texto bem agradável de ler!
Que saudades de partidas a alto nível tão bonitas mas, em simultâneo, relativamente tão simples...outros tempos, de facto.
Dervich
Olá Rini,
a paráfrase em questão se deve a uma passagem da canção, feita pelo incomensurável "cantautor" (http://pt.wikipedia.org/wiki/Cantautor), Vladimir Vysotsky, quem por sua vez se serviu da versão poética do seu precursor, o eterno Alexandr Pushkin.
E pronto, trata-se de que um Mago lhe prediz ao Príncipe Igor, que a causa da sua morte seria o seu próprio cavalo. Obediente, o Príncipe pede aos seus súbditos que lhe substituam esse cavalo por outro, deixando-no ao melhor dos cuidados previstos para um principesco cavalo...
Passado muito tempo, trás as muitas façanhas militares do Igor, ao celebrà-las, recorda o Príncipe o seu velho cavalo, perguntando aos seus súbditos:
" Onde está o meu Companheiro, o meu zeloso cavalo?"
" Morreu há muito tempo", - é a resposta---
Indignado porque a profecia não se tem cumprido, o Igor, vai então à procura do lugar onde estão os restos do seu querido Cavalo, e ao encontrá-los, diz umas palavras de despedida, colocando o seu pé sobre o crânio dele. É ai, então, onde é mordido por uma terrível víbora, que o mata quase em seguida...
"..e recebeu ele a morte do seu próprio cavalo..."
Olá Dervich,
por isso e que traduzi o texto, porque achei-o próximo a qualquer amador, como somos todos nós...
Grande abraço
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